sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Voar

Na praia deserta, um canto de aves marinhas me despertou do sono. Se sobrepôs ao ruído das ondas sutilmente, e então foi ficando mais forte. Passou por mim o bando em voo rasante, da praia em direção ao mar. Segui com os olhos. Elas não pararam, não mudaram de direção, continuaram voando para o mar profundo.



Para onde vão as aves? O sol está se pondo, em breve a escuridão estará completa e essas aves não conseguirão voar para sempre. 

Elas perderam o senso? Eu sabia, através de documentários, que o comportamento de grupos de certas espécies faz com que, às vezes, tomem um caminho errado. Como um grupo de baleias que, seguindo um lider pouco inspirado, encalham nos bancos de areia muito próximos à praia. Mas será que isso acontece com aves marinhas?

Nesse momento, sem perceber, eu fiz uma dessas duas escolhas:

1. Vou confiar no meus olhos. Cedo ou tarde, as aves perderão a força. Algumas cairão na água imediatamente e outras tentarão voltar. Pode ser que algumas consigam. Agora sei que o comportamento das aves é irracional. Um dia, escreverei alguma coisa para que as pessoas não sejam como estas aves inconsequentes.

2. Vou voar com as aves. Mas para voar preciso perder este ponto de vista que tenho agora na praia, em troca de outra compreensão da realidade. Pagarei o preço da irracionalidade e colherei a incompreensão de quem fez a primeira escolha. Mas vou descobrir o segredo das aves e um dia escreverei alguma coisa para contá-lo. 



domingo, 25 de agosto de 2013

A Presença

Uma antiga história conta que o profeta Elias, quando perseguido, foi se encontrar com Deus na monte Horeb. Ele passou a noite em uma gruta e, no dia seguinte, saiu para a montanha. Uma tempestade passou por ele, mas Deus não estava na tempestade. Depois veio um terremoto, mas Deus não estava no terremoto. A seguir, um incêndio devastador, mas Deus não estava no fogo. Então, no meio de uma brisa suave, ele ouviu: "o que fazes aqui, Elias?".



Poucos são os que tiveram a chance, como Elias, de ouvir uma voz tão clara, um indício irrefutável de uma inteligência superior e presente. Eu estou entre os muitos que nada ouviram. Mas ainda assim, ao longo de meus anos, desde a infância, tenho reconhecido que estou na companhia de alguém.

Ele ou ela teve muitos nomes enquanto eu crescia. Já a chamei de Maria, ou de algum anjo. Já achei que fosse um alienígena não preso às amarras desta dimensão de tempo e espaço. Quando trilhava caminhos do racionalismo científico, considerei que se tratava apenas de uma projeção ou delírio de minha mente. Depois pensei que fosse um espírito de luz. Os últimos nomes que lhe dei foram Jesus ou Espírito Santo. Mas ele resistiu a todas as minhas tentativas de sondar sua natureza. Hoje não tento mais descobrir e dar nomes. Hoje compreendo que sou como a formiga a tentar desvendar o segredo da floresta. Hoje o chamo apenas de a Presença.

São nos momentos de desafio que a Presença se torna mais forte. Como quando a vida tenta despertar em mim sentimentos de raiva ou mágoas, a Presença vem e os dissolve. Quando sou afligido pela solidão, a Presença me conforta e me fortalece. Se caio na ilusão de imaginar que uma situação não tem mais saída, a Presença abre portas que pareciam fechadas. Não sou perfeito, santo ou merecedor da Presença. Talvez Ela só esteja comigo porque, sem Ele, eu não conseguiria caminhar.

Assim como Elias só ouviu a voz na brisa suave, eu também preciso fazer silêncio para tê-la. Não adianta achar que Ele está na tempestade da empolgação. Não adianta imaginar que Ela virá abalando os alicerces, jogando todos por terra. Não adianta pensar que um fogo irá consumir todo o quadro ruim que já foi desenhado. Tenho que sintonizá-la em uma frequência bastante sutil.

Ela não me obriga a tomar nenhuma decisão certa ou errada, e por isso não me livra das consequências dos meus atos. Pode ser que Ele me proteja, mas sei que não impedirá minha morte. Antes de alguns tropeços Ela me fez ver as pedras. Em alguns caminhos difíceis, Ele me conduziu pelas mãos. Quem sabe Ela seja apenas a personificação de minha memória ou de minha percepção subconsciente. Quem sabe Ele seja Deus. Gostaria mesmo de saber sua natureza. Mas agora isso pouco importa. Só importa que Ele ou Ela esteja comigo.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

A Resposta

Me aproximei do espelho na escuridão. Não podia ver, mas sabia que resposta estava ali. Com os dedos prestes a tocar o interruptor e desfazer o mistério, tive medo. E se a luz revelasse outra coisa?



Esta pergunta não pôde ser respondida pela minha razão. O escuro é o lugar onde todas as possibilidades existem. Naquele espelho diante de mim estavam todas as coisas que poderiam acontecer, tanto boas quanto ruins. Em um segundo todas elas passaram diante dos meus olhos e meus dedos pararam no interruptor para que eu pudesse procurar a resposta.

O escuro nos dá medo porque estamos acostumados a nos afastar de algo que não conhecemos, e que pode nos causar dor ou felicidade. O escuro é o bem e o mal, e às vezes abdicamos do bem por medo do mal.

Permanecemos no escuro, mas não porque desconhecemos onde está o interruptor. Permanecemos porque sabemos que, ascendendo a luz, alteramos nosso mundo de maneira irreversível. Cada um decide o momento certo de sair da escuridão. Tal decisão de ascender a luz determina que, dentre todas as realidades existentes no escuro, apenas uma será escolhida para ser vivida. E, sendo uma escolhida, as outras desaparecem.

Meus dedos já tocavam o interruptor, ascender a luz seria inevitável. Quis fechar os olhos, como um último impulso de manter a escuridão. Mas uma última pergunta os manteve abertos. Posso escolher o que irá aparecer? Posso escolher a realidade que virá à tona? Posso escolher a resposta?

Então, de olhos bem abertos, pressionei o interruptor. E eu pude ver.


* baseado em sonhos lúcidos

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

O Segredo

Ela passou por mim usando um véu e um vestido branco, e eu soube instintivamente que deveria lhe contar o segredo. Ainda não conhecia seu nome, nem ao menos havia podido ver seu rosto nitidamente. Mesmo assim comecei a seguir seus passos, pois era importante lhe contar.

Seguindo-a, fui levado a desertos onde vales e montanhas se alternavam. Às vezes, deslumbrado pelo aspecto de uma paisagem, eu me esquecia do segredo por alguns momentos. Mas logo retomava o caminho, pois ainda não tinha lhe encontrado.

Caiu a chuva fina.

Apertei o passo, tentando me aproximar, mas foi em vão. Em meu rosto, sentia um vento leve. Os desertos ficaram para trás, e agora atravessávamos grandes campos gramados. Quando parei por um instante, tentando calcular a imensidão desses campos, me dei conta de que não conseguia mais me lembrar do segredo. Ainda assim, sabia que precisava encontrar aquela pessoa, pois tinha algo a lhe dizer. Então, prossegui.

A chuva se intensificou. A brisa se transformou em vento forte.

Deixamos os campos para trás. Estávamos agora em uma floresta repleta de árvores e um rio. Eu já não andava, mas corria para alcança-la, fazendo meu caminho por entre as clareiras. Quanto mais eu corria, mais a chuva e o vento se tornavam impetuosos. Começaram a surgir relâmpagos. Inicialmente eles caiam espaçados, mas não demorou para que viessem em ritmo frenético. E eu não conseguia alcança-la.

O som dos trovões se misturava ao barulho ensurdecedor da chuva caindo sobre as folhas, e à corredeira desenfreada do rio...


O Rio!

Agora, o Rio era o obstáculo. Lá estava ela, na outra margem. Eu não tinha como atravessar aquelas correntezas, então parei. Ela também parou.

Neste momento, o vento cessou, a chuva foi embora e o rio desapareceu. De alguma forma, percebi que eles tinham sido necessários. Não poderíamos nos encontrar antes daquele momento. Não poderíamos nos encontrar em outro lugar. E eu não poderia alcança-la sem enfrentar as forças da natureza.

Dei alguns passos, ainda sem ver seu rosto. Me incomodava o fato de não me lembrar mais o que eu deveria dizer. Mas o que isto importa? Eu estava lá, havia vencido desertos, campos, chuvas, florestas, ventos, trovões. Só o Rio eu não transpus, e isto coube a ela eliminar. 


Continuei caminhando. Ainda não sabia o que dizer. Mas talvez não fosse eu a falar. Quem sabe fora ela quem me trouxera até ali. Estando bem próximo, ela se virou, retirou o véu e me contou o segredo.

* baseado em sonhos lúcidos